*Escrita com a colaboração de José Herculino, da Urbnews.
“Visibilidade” é a palavra que sempre ressoa ao atravessarmos a história de luta LGBTQIA+ no Brasil. Nem nos momentos mais violentos e autoritários houve silêncio e inércia. E não poderia ser diferente na luta pela representatividade de milhares de pessoas transgêneras dentro do mercado de trabalho.
De acordo com um levantamento da Agência AlmapBBDO e do Instituto On The Go, cerca de 80% das pessoas trans já se sentiram discriminadas em alguma etapa de seleção para um emprego formal. Dados levantados pela rede social LinkedIn em 2022, quatro em cada dez pessoas LGBTQIA+ relatam ter sofrido discriminação no ambiente de trabalho.
O estudo também mostra que 8 em cada 10 pessoas LGBTQIA+, incluindo lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis, queer, intersexuais, assexuais e pansexuais, se sentem em algum momento confortáveis para compartilhar a identidade de gênero e a orientação sexual no ambiente de trabalho. Apesar disso, 43% dizem já ter sido vítima de preconceito.
Identificação e representatividade
Mas como encontrar representatividade no ambiente corporativo? Para Cândido Lima, de 25 anos, assistente de Cultura e Clima Organizacional da M. Dias Branco, no Eusébio, a resposta está no exemplo e no acolhimento que uma empresa oferece. Ele acredita que ações concretas, como cartilhas, programas e iniciativas de diversidade, fazem toda a diferença na vida dessas pessoas.
Cândido está à frente da área de diversidade da empresa em que trabalha. Prestes a se graduar em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará, o jovem homem trans conta como tem sido ser a referência, que ele não teve em experiências profissionais passadas, para outras pessoas que se identificam e se sentem seguras para serem quem são.
“Acho que desde a primeira oportunidade que eu tive de falar sobre diversidade, não estamos falando de prestar um favor a alguém, estamos falando de direitos, de vidas. Então todas as vidas que a gente impacta nesse processo, elas são ouvidas”, explica o assistente.
Em seu próprio retrato de experiência de vida, Cândido se diz um sujeito de sorte, ao resumir sua trajetória como uma em um milhão. Para o jovem, o benefício de ter sido ouvido desde a infância o ajudou a se encontrar como homem trans, e o apoio dos pais foi fundamental para que pudesse trilhar caminhos em segurança.
De casa à praça: a família e o empoderamento de pessoas trans
Apesar de exemplos positivos, como o de Cândido Lima, homem trans que recebeu o apoio da família desde o princípio, o mercado de trabalho ainda é um terreno difícil para pessoas transgêneras. Sem atalhos e com a ausência de políticas públicas efetivas, histórias de resistência e superação continuam a surgir — muitas delas impulsionadas por dois pilares fundamentais: o apoio familiar e o acolhimento no ambiente profissional.
Para entender a importância desses fatores, a psicóloga Julia Fidelis, especialista no atendimento de pessoas LGBTQIA+, reforça que o cenário vai além dos grupos minoritários. “No que tange à sexualidade, algumas coisas precisam ser mencionadas para que possamos entender como o contexto social e cultural afeta a vivência dessas pessoas. Nosso país é repleto de transfobia, e as manifestações dessa violência são tão variadas que muitas vezes as pessoas que a sofrem tentam evitá-la sem nem perceber”, explica. Essa violência, muitas vezes invisível, pode minar a autoestima e dificultar a inserção no mercado de trabalho.
Dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) revelam que mais de 90% da população trans brasileira ainda recorre à informalidade para sobreviver. A exclusão começa muitas vezes dentro da própria casa, e se estende ao longo da vida adulta, refletindo diretamente na autoestima, nas oportunidades e na inserção profissional. Nesse contexto, o apoio familiar surge como um fator decisivo.
“Essa validação, desde cedo, meio que muni o indivíduo de uma segurança que é extremamente valorosa para que ela, para que ele construa o seu futuro e ocupe espaços sociais, sejam esses espaços pessoais e relacionais ou escolar, acadêmicos, formativos e profissionais”, pondera Julia, que continua: “A família tem um papel muito importante para essa população, podendo atuar de forma protetiva ou não. Quando há apoio e aceitação familiar, o fortalecimento da identidade trans é potencializado. Se essa pessoa é apoiada no seu convívio familiar, sem questionamentos ou invalidade acerca de sua identidade de gênero, ela desenvolve uma percepção de si mais positiva, o que a protege contra a internalização de preconceitos sociais, como a homofobia ou transfobia internalizada”.
No caso de Cândido, esse apoio foi o alicerce que o impulsionou a buscar seus sonhos e conquistar seu espaço. “Ter minha família ao meu lado fez toda a diferença. Eles sempre me apoiaram e me incentivaram. Isso me deu força para lutar pelos meus direitos e pelo meu lugar no mercado de trabalho”, conta o jovem.
Porém, a realidade ainda é desafiadora. Segundo levantamento do Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+, embora 61% das empresas empreguem pessoas trans, apenas 16% delas ocupam cargos de liderança, e, no Brasil, cerca de 15,5 milhões de brasileiros pertencem à comunidade LGBTQIA+, o equivalente a 7% da população, segundo o DataFolha.
O papel das empresas em humanizar a contratação de pessoas trans
Quando nos lançamos sobre a esfera laboral, um levantamento da plataforma To.gather feito em quase 289 empresas, com 1,5 milhão de trabalhadores, mostra que essa parcela do país ocupa apenas 4,5% dos postos de trabalho.
E quando o “x” da questão é a letra T da sigla, a situação é ainda mais dramática: estes não chegam nem a 0,5% (0,38%). Os motivos para a exclusão são diversos. O mais comum é a falta de oportunidades. Para a analista de gente e gestão, Stefany Almeida, essa situação pode ser contornada. “É fundamental repensar toda a estrutura de recrutamento e seleção: desde a forma como as vagas são divulgadas, até a priorização de habilidades que podem ser desenvolvidas, evitando focar exclusivamente em requisitos obrigatórios”, aponta
Stefany destaca que é fundamental que as empresas não vejam a diversidade apenas como uma questão de representatividade, mas como uma prática efetiva. “É importante que existam políticas afirmativas que garantam espaço e oportunidade para esses profissionais”.
Como em casos semelhantes ao de Cândido, que ocupa hoje uma boa posição dentro da empresa em que trabalha, a efetivação, porém, não é mais suficiente. Parte da contratação de pessoas transgêneros está na garantia da possibilidade de acesso a cargos de liderança.
“É fundamental que existam evidências concretas de que a diversidade não é apenas um valor declarado, mas uma prática efetiva, como, por exemplo, a presença de pessoas trans em cargos de liderança ou a promoção de jovens que entram como estagiários e são efetivados na equipe”, indica a analista.