O ano é 2023 e um fungo altamente letal e contagioso exterminou a maior parte da humanidade. Essa é apenas a premissa da série de ficção The Last of Us, sucesso de audiência lançado pela HBO neste ano — mas não significa que os superfungos não sejam uma preocupação na nossa realidade.
O superfungo Candida auris está causando uma preocupação global e deixando autoridades de saúde em alerta. O estado de São Paulo confirmou seu primeiro caso de infecção em junho, enquanto Pernambuco já registrou, somente neste ano, dez casos e dois óbitos. O primeiro caso no país foi identificado em dezembro de 2020, na Bahia.
Além de uma letalidade de até 60%, o Candida auris preocupa pelo fato de ser super-resistente a vários dos antifúngicos mais utilizados em tratamentos médicos, como a caspofungina. Uma pesquisa, porém, está trabalhando em uma molécula sintética que pode mudar esse cenário, potencializando o efeito do remédio contra os super fungos.
Trata-se ainda de um trabalho com DNA nordestino, graças à participação do Prof. Pedro Filho Noronha de Souza, pesquisador do Departamento de Bioquímica e Biologia Molecular e do Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos da Universidade Federal do Ceará (UFC).
A pesquisa teve início com o interesse de cientistas da Universidade de São Paulo (USP) em buscar um tratamento mais eficaz para a aspergilose pulmonar, uma infecção perigosa provocada pelo fungo Aspergillus fumigatus. Eles começaram a pesquisar moléculas que pudessem ajudar o efeito da caspofungina contra o fungo, e então chegaram na brilacidina, um peptídeo sintético.
O professor potiguar foi procurado pelos pesquisadores da USP para colaborar em razão de seu longo histórico e expertise com peptídeos sintéticos. Os testes tiveram início em meados de 2021, com a ajuda de cientistas dos EUA, África do Sul e Inglaterra, que realizaram os experimentos concomitantemente.
Houve ainda o suporte de uma biblioteca de moléculas disponibilizada por um centro de pesquisa estadunidense. “No meu trabalho a gente estudou muitos fungos que eram mutantes, pra tentar entender como é que ocorria, então eles cederam esses mutantes que a gente não tem como produzir aqui”, explica.
A descoberta da eficácia do peptídeo sintético brilacidina contra três tipos perigosos de fungos foi publicada em abril deste ano na revista Nature, um dos mais importantes periódicos científicos do mundo. O trabalho levou em média dois anos e meio ao todo, entre processos de submissão e aceite.
Impacto em humanos
O fungo-alvo da pesquisa não tem chamado tanta atenção da mídia quanto o Candida auris, mas também traz risco às pessoas. “Os fungos do gênero Aspergillus são muito versáteis, eles infectam humanos, plantas, animais, vivem no solo. Então eles convivem diariamente com a gente. Só que algumas condições como sistema imunológico, ou até mesmo o efeito invasivo que eles possuem, fazem com que eles comecem a iniciar um processo infeccioso”, conta o prof. Pedro de Souza.
Esse processo infeccioso se torna muito mais letal quando se instala no pulmão, explica o cientista. O fungo começa a colonizar o pulmão, que é um tecido mais frágil, e evolui a aspergilose pulmonar, que em muitos casos leva ao óbito. “Ele pode causar infecções de pele, infecções no sangue, que são as mais comuns, e infecções oportunistas também. E aí quando isso vai evoluindo sem um tratamento correto, você pode ter o desenvolvimento de uma aspergilose”, complementa o pesquisador.
A eficácia da brilacidina com a caspofungina não foi testada somente contra o Aspergillus fumigatus, mas também contra o Candida Auris e contra o Cryptococcus neoformans, que pode causar uma forma de meningite muito severa, capaz de infectar tanto os pulmões quanto o cérebro.
Fases finais e aplicação futura
Com testes bem sucedidos com ratos infectados, a pesquisa apresenta um potencial muito forte, e a tendência para o futuro é expandir esses experimentos. “A gente precisa fazer muitos novos testes em animais para que a partir daí possamos encaixar esses resultados e tentar a submissão para começar clinical trials, que já são os testes de toxicidade em humanos”, detalha o professor Pedro.
Lembrando que a caspofungina é um remédio já em circulação, e a brilacidina está em fase avançada de testes clínicos. Isso facilitaria o processo de aplicação da pesquisa no sistema de saúde, bastando somente a conclusão da autorização do peptídeo sintético. Segundo o cientista, hoje é muito mais difícil colocar uma droga nova no mercado do que conjugar com algo que já está disponível.
“Eu acho que essa ideia de fazer o mix de componentes, pegar aqueles que já existem mas para os quais os fungos são resistentes e a gente tentar ajudar eles, vai ser a forma mais fácil de colocar algo mais eficiente no mercado, e mais rapidamente. Porque esse é o intuito, ajudar a população.”
Coisa de ficção?
Já sabemos que essa pesquisa tem o potencial de auxiliar no tratamento de graves infecções por fungos super-resistentes, mas será que ela poderia ser uma solução para o apocalipse em The Last of Us?
A produção da HBO se passa em um futuro apocalíptico fictício, mas o fungo responsável não é completamente inventado. Na nossa realidade, fungos do gênero Cordyceps não afetam humanos, apenas um nicho muito específico de insetos. Eles parasitam hospedeiros e provocam alterações em seu comportamento e criando verdadeiros zumbis. Na série, porém, as condições climáticas permitiram que ele evoluísse para contaminar pessoas até causar a quase-extinção da humanidade.
O pesquisador Pedro de Souza brinca com a hipótese da brilacidina, o peptídeo de sua pesquisa, ser útil aos personagens da série: “ela pode ajudar, mas muitos testes ainda precisam ser realizados. Mas o potencial dela em ajudar a reverter essa resistência em três espécies de fungos diferentes, isso já diz bastante”, finaliza.